Seja bem-vindo. Hoje é

VIRGEM

Quadro de Pam Hawkes




 Todas as coisas estão aqui.
Estou intacta,
resistindo aos poentes
e à beleza ultrajante das estrelas.

Acordo cada vez mais eu mesma
todos os dias
e não peço chances a vida.

Os meus contornos derramam-se
em água, as minhas mágoas diluem-se.
Ninguém me retém:
escorro alegremente
pelos impulsos do meu corpo.

Meus gestos estão quase perfeitos.
Hoje eu sou um pouco mais eu amanhã.



Karla Bardanza








Copyright © 2012 Karla Bardanza Todos os direitos reservados Photobucket

PEQUENAS NECESSIDADES

 Quadro de Francesco di Grandi




Preciso contemplar uma coisa grandiosa
como flores derramando suas cores
pelo horizonte ou as montanhas
do Himalaia.

Meus olhos descansariam
sobre aquelas metáforas,
ampliando a vida
até o tempo transbordar.

Preciso folhear livros
que nunca li,
acariciar os poemas de Mary Oliver,
fazer amor com as palavras de Mário Quintana.

(Alguém me ama:
esse eu guardo em envelopes antigos,
em profundezas de veludo.
Esse me deu quase todo o mundo
quando eu ainda nem sabia como
usar as mãos.)

Careço de abrir a luz
e dobrar o infinito
enquanto esqueço de mim mesma
no que sinto
para enfim
 me resgatar
da vida.


Karla Bardanza








Copyright © 2012 Karla Bardanza Todos os direitos reservados Photobucket

AGUAS RARAS


Quadro de Hélène Delmaire


Tenho sede de águas profanas,
de coisas que não alcanço
e que descansam em músicas,
em meus olhos fechados.

Invento a hora,
curvo os minutos,
traço rostos e rotas em retas
que nascem e morrem no infinito.

E o que sinto
arranca algodão
dos campos de cetim.

E o que sinto
abre as portas do mar
que desemboca estrelas
dentro de mim


Karla Bardanza

 








Copyright © 2012 Karla Bardanza Todos os direitos reservados Photobucket

POEMA QUASE ERÓTICO

 Quadro de Ho Ryon Lee



Abaixo as mãos,
procurando a saudade em ti:
uma dura vontade suave.

Nave sem destino,
menino, menino
onde é que você escondeu
isso que já foi meu?
Isso que nunca foi meu?

Menino, menino
estamos velhos,
mais gostosos
e insatisfeitos.

De que jeito começar
aqui dentro mais uma vez?
Vamos mentir?
Vamos nos desesperar?

Menino, menino,
para onde vou
se já não sei mais chegar?

Seguro o calor
sentindo o constrangimento
da fome,
esquecendo nomes,
endereços e códigos de honra
e de barra.

Menino velho,
desaprendemos a felicidade.
Já não sei mais como
brincar com tanta leveza.
Menino, menino
onde foi que perdi
a delicadeza?

Acordo
da vaidade momentânea,
pedindo arrego,
cheia de medo
e de absolvição.

Menino, menino,
deixa eu fugir de mim
e me esconder por detrás do Muro de Berlim.

Menino, menino,
dizer sim ao passado
é assustador.

O amor está em algum manual,
em letras apagadas,
em coisas que já desconheço.

Menino, menino
isso é quase um romance.
E pra isso,
tem preço.

Fecho as mãos,
segurando meu resto de consciência.

Menino, menino,
a gente não pode, 
nem deve fazer mais nada
além de pura saliência.


Karla Bardanza





Copyright © 2012 Karla Bardanza Todos os direitos reservados Photobucket

MARÍTIMO

 Quadro de Sally Swatland



Para ver o mar
é preciso travar uma guerra
com a janela
e com o muro caindo aos pedaços.

E depois jogar os olhos
no além dor real,
nas ondas saltitando
entre um líquen e outro.

É bom também
ficar em silêncio,
sempre em silêncio
para ouvir o mar dissolvendo
a tarde num quadro impressionista.

Para ver o mar é preciso muito pouco:
apenas ser poeta ou artista.


Karla Bardanza






Copyright © 2012 Karla Bardanza Todos os direitos reservados
Photobucket
     

DO AMOR QUE PASSOU E FICOU

Quadro de Alessia Iannetti






Ainda nos olhamos assustados,
escorregando para o mais distante
da mesa, guardando tudo e nada
na boca esmagada pelo
absurdo medo de pular a cerca
do tempo devorador.

Todos os movimentos
são em 
falso
jeito de existir.

Afundo em mim,
olhando você entrar no carro,
mais difuso,
desobservando os desenhos
do teu cigarro ao redor.

E quando partes,
é sempre tu que estás
muito mais cansado e só.


Karla Bardanza



 Copyright © 2012 Karla Bardanza Todos os direitos reservados Photobucket

ANTROPOFAGIA

 Quadro de Richard Phillips




O preço da mercadoria
foi uma bagatela.
Ele pagou pouco pelos seios,
pela boca, por algumas partes dela. 

Pedaço de carne barato:
Vinte reais de quase amor.
Ele pegou tudo com os dentes.
Já nasceu com olhos de caçador.

Depois que come a carne,
rói com avidez até os ossos.
Dá última só restou mesmo
um pouco de sangue nos destroços.


Karla Bardanza





Copyright © 2012 Karla Bardanza Todos os direitos reservados Photobucket

INDELICADEZAS DO DESTINO

Quadro de Monica Maffei




Mastigou o ódio
com as mãos enfiadas nos bolsos
às 6 horas da manhã,
em pé no ponto de ônibus lotado
de caras desanimadas.

Teve náuseas, enjôos,
suores estranhos.
Não sabia que cabia tanta coisa
daquele tamanho
dentro dela. 

Ao meio-dia
teve certeza que estava à mercê
das indelicadezas do destino
e desatou a chorar
com o currículo na mão,
pedindo a Deus
que a salvasse dela mesma.


Karla Bardanza






MaCopyright © 2012 Karla Bardanza Todos os direitos reservados Photobucket