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A DELICADEZA RUDE DO RIO


Quando a enchente chegou, ela ficou em cima da cama, olhando a água subir e inundar a casa inteira. Ela não teve medo: ela quase nunca tem medo. Ficou parada, observando a delicadeza rude do rio com os olhos desabitados e a alma sem palavras. Mal podia pensar: a água subia com tanta graça e força. A noite era um abismo gentil, uma surpresa doente. Ficou muda, geralmente, ela fica muda quando a emoção chega sem avisar. Acho que foi ali que ela aprendeu a se afogar e a sobreviver.



Não sei, mas ela sentiu aquela correnteza, devastando tudo tão de repente. Alguém falou uma frase tão perfeita. Aquilo foi como ter se afogado novamente. Pela primeira vez, ela teve medo e se sentiu tão ridícula, tão sozinha, tão plena de sombras e vazios. ”Gostar errado, gostar errado, gostar errado”. Tudo ficou vibrando nos olhos dela, rasgando todos os rios silenciosos e traiçoeiros que ela ainda insiste em sepultar dentro de si mesma. Raramente, fala daquele momento tatuado na pele, raramente permite-se ter medo.


Quando acordou, estava em cima da cama mais uma vez, vendo a água inundar tudo: a sala, o sofá, o sentimento, as palavras. Olhou sem olhar, ouviu sem ouvir, aterrorizada por sentir, por apenas sentir. Ela apenas se lembra das meias azuis, de tudo que é distante, doce e ameaçador. Fugiu. Pegou o primeiro ônibus que passou, colocou os óculos escuros e chorou, olhando a velha paisagem.


Metade dela continua calada, vendo a água subir e a destruição chegar. A outra, eu creio que a enchente levou para sempre.


 
 
Karla Bardanza

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